A confusão atordoa os olhos, braços giram qual moinhos de vento num furacão […] A regra era que todas as comunicações fossem orais. Nosso jargão de sinais, obviamente, era proibido. […] Mas aquela regra não podia ser imposta sem a presença dos funcionários da escola. O que estou descrevendo não é o modo como falávamos, e sim como conversávamos entre nós quando nenhuma pessoa ouvinte estava presente. Nesses momentos, nosso comportamento e nossa conversa eram muito diferentes. Relaxávamos as inibições, não usávamos máscara.”
Surdo aos oito anos, o menino David Wright escreveu sua rotina na Northampton School, uma escola especial da Inglaterra. “Uma das implacavelmente dedicadas, mas equivocadas, escolas ‘orais’, que se preocupam sobretudo em fazer os surdos falar como as outras crianças e que causaram muitos danos a indivíduos com surdez pré-linguística desde o princípio”, nas palavras do neurologista Oliver Sacks.
No livro “Vendo vozes: uma viagem ao mundo dos surdos”, Sacks conta como a proibição quase doentiamente feroz, “soberba”, à língua de sinais desenvolvida pelas próprias crianças surdas na escola retardava seu desenvolvimento. O objetivo das escolas era nobre: desenvolver aquelas crianças. O problema foi a imposição da ferramenta, com uma total cegueira para suas próprias capacidades: vocês precisam falar a nossa língua.
Foi de um abade, Charles-Michel de l’Epée, que veio uma transformação significativa: ele percebeu como os surdos pobres que vagavam por Paris se viravam bem usando uma língua de sinais nativa. E foi criando um sistema de sinais – uma combinação da língua de sinais nativa com a gramática francesa traduzida em sinais – e sua escola, fundada em 1755, permitiram pela primeira vez que alunos surdos lessem e escrevessem em francês e, assim, pudessem aprender.
Enquanto ensinar o surdo a falar exigia um professor dedicado a um único aluno, por muitos e muitos anos, e criava, na melhor das hipóteses, um analfabeto funcional, o abade conseguia educar alunos às centenas com seu método em pouco tempo.
A realidade foi mudando e a então linguagem de sinais podia ser aprendida rapidamente e restando tempo para a educação tradicional, permitindo que eles chegassem a um nível de instrução equiparável ao dos ouvintes. L’Epée tinha um objetivo prático: ele não tolerava a ideia de os surdos morrerem sem conseguir se confessar. E sua vitória veio do fato de, com base nesse propósito, encarar os surdos e a sua linguagem não com desprezo, mas com reverência.
A história, o progresso e a tecnologia chegaram. Existem até leis que nos ensinam e favorecem a inclusão dos surdos, e que hojepodemos aprendermos que os surdos podemos de fato devem sair do “inferno” solitário do mundo opressivo de ter que ouvir e falar.
Ainda assim, mas ainda há profissionais que insistem que os surdos devem falar e não serem felizes. Ainda há empresas que não seguem as leis e não garantem interpretes ou no mínimo dignidade para seus funcionários e clientes. Até quando nesse inferno?